Se olharmos de relance, eles não são tão diferentes assim. O Sars-CoV-2, o novo coronavírus, o HIV e o vírus da dengue se constituem de material genético (RNA) coberto por um envelope de lipídios e proteínas.
A grande esperança da comunidade científica e da população para lidar com essas doenças são vacinas com grande poder de proteção. Se esse poder for grande o suficiente, no caso de uma vacina contra novo coronavírus, quem sabe as medidas de distanciamento social possam se tornar coisa do passado?
Governos, institutos de pesquisa, indústrias farmacêuticas e dezenas de milhares de cientistas em todo o mundo aceitaram o desafio de tentar lançar o quanto antes uma vacina contra o Sars-CoV-2. Alguns dos mais de 120 candidatos já estão na chamada fase 2 de pesquisa clínica (de um total de três), quando se busca comprovar a eficácia com ensaios que envolvem até centenas de seres humanos.
Se tudo der certo, é possível que algumas vacinas já sejam lançadas no fim deste ano ou ao longo de 2021. Trata-se de velocidade impressionante se lembrarmos que desde a década de 1980 a humanidade se esforça para criar imunização contra o HIV e que pesquisas de vacinas contra a dengue acontecem desde a década de 1950. Tipicamente, leva-se uma década ou mais para se lançar uma vacina.
Só em 2016 foi aprovada uma vacina contra a dengue, a Dengvaxia, da Sanofi, com proteção de 60,4% após três doses e capacidade de reduzir em 80% as hospitalizações. Em 2017 a bula do fármaco foi alterada, porém, porque havia o risco de que quem nunca teve dengue, após receber a vacina, desenvolvesse quadro mais grave da infecção.
Os Institutos Nacionais de Saúde dos EUA intensificaram a busca por uma vacina contra a dengue a partir do começo deste século e conseguiram obter um candidato, o TV003. No Brasil, os testes são conduzidos pelo Instituto Butantan, que planeja lançar a imunização antes de 2024, segundo Ricardo Palacios, diretor de ensaios clínicos.
Comparar os mais de 60 anos para se chegar a uma vacina contra a dengue com poucos meses que podem nos separar de uma vacina para prevenir Covid-19 é injusto, avalia Palacios. O motivo, explica, é que a vacina da dengue é tetravalente e age contra os quatro sorotipos do vírus.
No caso, o problema é que a resposta imunológica a um dos vírus, pode, em vez de atenuar, amplificar a infecciosidade dos demais. Por isso quem já teve a doença tem maior risco de desenvolver dengue hemorrágica.
Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), todo ano o vírus da dengue infecta 390 milhões de pessoas em todo o mundo, das quais 96 milhões apresentam sintomas e milhares morrem. No caso do novo coronavírus, como se trata de apenas um vírus, o trabalho a ser desenvolvido potencialmente é bem menor.
Uma possibilidade que pode acelerar os testes clínicos e que foi empregada com sucesso em um teste nos EUA é o chamado “ensaio de desafio” —voluntários, imunizados ou não, se sujeitam a serem infectados pelo patógeno em um ambiente controlado a fim de ajudar a compreender a patologia ou a testar a capacidade de uma vacina.
Outro trabalho hercúleo que tem tomado décadas dos cientistas é encontrar uma boa vacina contra o HIV (vírus da imunodeficiência humana), causador da Aids (síndrome da imunodeficiência adquirida). Todo ano, 770 mil pessoas morrem por causa do vírus. Esse número já foi de quase 2 milhões há cerca de 15 anos.
Uma vacina com alto poder de imunização, avaliam estudiosos, é a arma que falta para fazer com que essas mortes cheguem um dia a zero. Por causa do comportamento elusivo do vírus, porém, ainda não chegamos lá.
O HIV infecta células do sistema imunológico e incorpora uma versão em DNA de seu material genético ao da célula hospedeira. O organismo até consegue fabricar anticorpos, mas isso se dá tarde demais, quando o patógeno já não está circulando, mas escondido. Com a sabotagem do sistema imunológico, o corpo fica mais suscetível a infecções e a alguns cânceres.
Em 1984, quando a epidemia de Aids ganhava tamanho, o governo americano anunciou que uma vacina estaria pronta para testes dali a dois anos. Não deu certo, assim como diversas outras tentativas. Um resultado moderadamente animador veio em 2009, quando uma candidata a vacina foi capaz de reduzir a chance de transmissão em 31%.
Desde então, a maior aposta dos cientistas são os bNAbs (anticorpos com neutralização de amplo espectro). Uma vez obtidos, esses anticorpos seriam capazes de lidar com diversas variantes do HIV, que naturalmente sofre mutações. Se os bNAbs estiverem presentes antes de o HIV de fato aparecer, há grandes chances de o patógeno ser eliminado antes de conseguir se esconder.
No caso do Sars-Cov-2, como ele não tem essa capacidade de se esconder, depois que as pessoas se infectam é muito provável que haja imunidade, caso sobrevivam.
Tudo pode parecer novo na pandemia de Covid-19, mas o vírus não é tão inédito assim. Desde as epidemias de Sars (síndrome respiratória aguda grave) e Mers (síndrome respiratória do Oriente Médio), também causadas por coronavírus, diversas pesquisas têm buscado conhecer os patógenos e criar possíveis vacinas.
Uma das proteínas mais usadas como alvo é a S (spike). “Existem diferença entre as spikes, mas em termos de estratégia de infecção e de transmissibilidade, isso já foi muito explorado. São mais de 15 anos de conhecimento”, afirma Paola Minoprio, coordenadora da Plataforma Científica Pasteur-USP, que reúne pesquisadores dedicados ao estudo de doenças infecciosas.
Para especialistas, é fundamental que sejam seguidos todos os passos da pesquisa clínica. “Podemos apressar os passos de revisão, priorizar a análise, mas não abrir mão do rigor. Não podem passar pesquisas com dados insuficientes, ou mesmo relaxar o padrão”, afirma Palacios.
Caso esses cuidados não existam, diz o diretor de ensaios clínicos do Butantan, um produto ruim pode ser aprovado, provocando uma catástrofe. “As pessoas podem deixar de acreditar não só nessa mas em todas as vacinas, e até mesmo passar a recusá-las.”
Assim que houver solicitação de registro de uma vacina contra Covid-19, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) afirma, em nota, que vai colocar todos os esforços necessários para que ela seja disponibilizada “com a celeridade necessária e com a devida comprovação de qualidade, segurança e eficácia”.
Para a agência, é não é possível fazer previsão de quanto tempo levaria a análise de medicamentos e vacinas contra a doença. A RDC (resolução da diretoria colegiada) 55/2010, diz que é possível que haja registro de vacina antes mesmo de encerrar a fase 3 de pesquisa, no caso de “doenças graves e/ou de alta mortalidade”, “desde que seja demonstrada uma alta eficácia terapêutica ou preventiva e/ou não exista outra terapia ou droga alternativa comparável para aquele estágio da doença.”